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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Lugares de prisão


Nos tempos de aprisionamento, esteve o nosso escriba em 4 lugares distintos, entre o Rio e a Ilha Grande. Ficam algumas imagens de uma, a Colonia Correccional Dois Rios (Ilha Grande), e a planta de outra, a Capela de Correcção do Rio.




1942, General Flores da Cunha e outros presos (Dois Rios)



1937, presos trabalham na construção de uma estrada (Dois Rios)


AntigoAdmPresidioVelho
Antiga Administração do Presídio Velho (Ilha Grande)

Prédio da Administração do primeiro presídio (Ilha Grande)

Antigo presídio (imagem recente)






Planta da capela convertida em reclusão de presos sem processos, de acusados sem crime preciso, de simples suspeitos, reunidos na Sala da Capela (Rio de Janeiro)


terça-feira, 31 de maio de 2011

Primeira parte (Viagens) - capítulos 1, 2, 3 e 4

Surpreendentes, as iniciais 25 páginas da primeira parte do livro - Viagens. Encontramos em Graciliano um escritor honesto, humilde, virado para a tradição de Assis, embora fugindo-lhe no que ela tem de ornamentado. Para Ramos, a linguagem assume contornos tão reais, despudoradamente realistas, que às primeiras linhas sabemos estar não só na presença de um livro de memórias como também, e sobretudo, de um livro de confidências. Do próprio, do país, dos afectos, das inseguranças, dos assombros. Há em Graciliano Ramos, e no que escreve, uma espécie de infantilidade atenta, uma inocência que perscruta e reconhece o que vê, sem que por esse facto se torne demasiadamente adulto ou falho de imaginação. Chega a ser básica a sua escrita, mas não vulgar - um desconstruir de linguagem que ele próprio defende dever ser filtrada as vezes necessárias até só existir o que tem de ser dito. E o que fica é uma escrita limpa, enxuta, largada de enfeites. Só coração, cabeça e uma sinceridade desarmante.
Servem-lhe estas páginas para o exercício de nos colocarem no universo fechado e conturbado do Brasil de Getúlio Vargas, pós Intentona Comunista, um Brasil conspiratório e conspirador, do qual Graciliano, embora dele tivesse sido vítima, tem, numa primeira fase, uma visão por vezes quase inocente ou, talvez mais corecto, resignável.

«Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.» (p. 7)

«De facto ele [fascismo] não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.» (p. 7)


Questionamo-nos sobre se esta primeira abordagem ao Governo Constitucional de Vargas não terá sido fruto de um sentimento de desistência e uma vontade magnânime do próprio autor de, semi-redimindo quem o injustiçou, redimir-se a si próprio.

«Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão – e provavelmente isto será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias.» (p. 9)

É certo que a verve crítica mantém-se e que a suposta aceitação de uma realidade castradora da liberdade social e artística se deve entender mais no plano de uma abordagem pragmática do que no plano ideológico. E as linhas seguintes provam que em Graciliano, embora distante no tempo, persiste a fotografia mental dos tempos que viveu, tanto numa abordagem geral

«… a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria. Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes. Essas incapacidades abundantes deviam aproveitar-se de qualquer modo, cantando hinos idiotas, emburrando as crianças. O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam aguentar políticos safados e generais analfabetos?» (p. 14)

«"Ouviram do Ipiranga as margens plácidas.". Para quê semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do céu?» (p. 14)
 
 
... como numa referência social, especificamente sobre as questões raciais tão presentes ainda, fazendo-nos conhecer um outro lado da sua personalidade, entre a ironia e o cinismo

«… D. Irene enchera a escola. Aumentado o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos. Ao vê-las, um interventor dissera indignado:

- Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias.
E alguém respondera.
- É o que podemos expor.
Calçados e vestidos pela caixa escolar, os garotos se haviam apresentado com decência. Lembrava-me da lufa-lufa necessária para modificá-los, ria-me pensando em Flora Ferraz sentada no chão, às oito horas da noite, a experimentar sapatos em negrinhos. Avizinhando-me dela, repelira-me com raiva:
O senhor tem coragem de me dar a mão? Estou suja. Desde a manhã aqui pegando os pés destes moleques!
Quatro dessas criaturinhas arrebanhadas nesse tempo, beiçudas e retintas, haviam obtido as melhores notas nos últimos exames.
- Que nos dirão os racistas, d. Irene?» (p. 18)
 
Quanto mais o lemos, mais o entendemos como criatura persistente na inocência. As linhas sobre o processo que o levou ao encarceramento denotam um homem surpreendido com o mundo, quase incrédulo, totalmente enleado na máquina febril da perseguição e no entanto, como se fosse apenas um observador sem acção directa na trama, como se ele próprio estivesse além da sua própria captura. Graceja com o facto, descobre inclusivamente razões para entender a prisão como um lugar onde pode, sem "ruído", trabalhar e acabar projectos. É quase cómica, não fosse trágica e profundamente inquietante, a forma como discorre sobre a sua visão das coisas

«Algum tempo depois um amigo me procurou com a delicada tarefa de anunciar-me, gastando elogios e panos mornos, que a minha permanência na administração se tornara impossível. Não me surpreendi. Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos. Eu conseguira aguentar-me ali mais de três anos, e isto era espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido nas escolas o hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se considerava impatriótico. O aviso que me traziam era, pois, razoável, e até devia confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo.» (p. 11)

«… minha mulher replicava com estridência. Escapava-me a significação da réplica, mas a voz aguda me endoidecia, furava-me os ouvidos. Não conheço pior tortura que ouvir gritos. Devia existir uma razão económica para esse desconchavo: as minhas finanças equilibravam-se com dificuldade, evitávamos reuniões, festas, passeios. De fato as privações não me inquietavam. Minha mulher, porém, sentia-se lesada, o que me fazia perder os estribos. De repente um ciúme insensato. A incongruência me arrancava a palavra dura:
- Que estupidez!
Naquele momento a ideia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade» (p. 16)

«… desejei que na acusação houvesse algum fundamento. E não vejam nisto bazófia ou mentirás: na situação em que me achava justifica-se a insensatez. A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o livro.» (p. 17)

«Julgava é que não me deteriam nem uma semana. Dois ou três dias depois me mandariam embora, dando-me explicações. Um engano.» (p. 17)



«Convenci-me de que isto seria fácil: enquanto os homens de roupa zebrada compusessem botões de punho e caixinhas de tartaruga, eu ficaria largas horas em silêncio, a consultar dicionários, riscando linhas…» (p. 17)
 
Terão sido devaneios de um homem pouco preparado para a aceitação da realidade? Duvidamos. Ramos exerceu funções de todo o tipo, de administrador a político, justificarmos esta "demência" à luz de um sentimento de irrealidade é parca prova e pobre conclusão. Talvez que Graciliano fosse, antes, um eterno menino, perdido entre os sonhos e os livros, razões últimas e supremas para que cada um de nós, se os vivemos, se mantenha à margem dos acontecimentos. Um laivo de imaginação para que a dor doa menos ou não doa sequer. Fala-nos do livro que escrevia (Angústia), na primeira pessoa, misturando quase vida e obra, num certo reconhecimento de que as duas não raras vezes se encontram e misturam

«O meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassínio, realizado em vinte e sete dias de esforço com razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrin.» (p. 15)

Luís da Silva ou Graciliano Ramos? A velha questão sobre se o que é escrito não é o próprio escritor. Mas a realidade, essa, compadece-se pouco com filosofias de vão de escada e antes que soubesse bem ao que ia, já o autor estava preso

«Sentado na cama, o chapéu em cima da valise, abri com o pente as páginas dos três volumes que trouxera: Território Humano de José Geraldo Vieira, Gente Nova de Agripino Grieco e Dois Poetas de Octávio de Faria. Li a primeira folha do primeiro umas três vezes, inutilmente. Conservei esses livros muitos meses, acompanharam-me por diversos lugares, foram remoídos, esfacelaram-se, pulverizaram-se; hoje, com esforço, consigo recordar algumas passagens de um deles.» (p. 22)

conjecturando questões menores, ainda em negação - ou seria já a aceitação e antecipação do que estava para vir? -, em críticas absurdas, questionando procedimentos militares e burocráticos. Há, de facto, algo de kafkiano na situação que nestas primeiras linhas Ramos descreve - o homem dentro do mundo, o homem isolado, descrente, incompreendido, incapaz de lutar contra uma roldana que segue o seu movimento de dentes cerrados contra a vontade individual. Quase conseguimos imaginá-lo, em jogos mentais fechado numa cela, perdido, abstraído, difuso sem nome para as coisas nem pensamento que as reconheça. Concentra-se na única peça humana que tem à vista
 
«Estirei-me no colchão, vestido, o livro de José Geraldo aberto sobre o estômago vazio. Em jejum desde manhã, mas isto apenas me causava uma vaga tontura e escurecia a vista. E concorria talvez para dificultar a compreensão do texto. Virando a cabeça, percebia à esquerda o soldado imóvel. Essa precaução me parecia tão burlesca e tão estúpida que interrompia a leitura vã, ria-me, apesar de tudo.» (p. 22)

«E ali estava com sentinelas à vista. Para quê? Não era mais simples trancarem a porta? Aquele dispêndio inútil de energia corroborava o desfavorável juízo que eu formara da inteligência militar.» (p. 22)

«O sujeito firme, encostado ao fuzil. Iria passar ali a noite, dormir em pé? Eu não tinha sono, mas ele, coitado, com certeza engolia bocejos, amolava-se. Enfim que significação tinha aquilo? Pretenderiam manifestar-me deferência, considerar-me um sujeito pernicioso demais, que era preciso vigiar, ou queriam apenas desenferrujar as molas de um recruta desocupado? Compreenderia ele que era uma excrescência, ganhava cãibras à toa, equilibrando-se ora numa perna, ora noutra? Se não fosse obrigado a desentorpecer-se e dar-me um tiro em caso de fuga, aquela extensa vigília só tinha o fim de embrutecê-lo na disciplina.» (p. 23)
 
enquanto reflecte sobre possíveis pecadilhos que o terão levado ali

«… estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efectivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis, via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacob.» (p. 17)
 
E o que ouviu ao tenente, à passagem do capítulo 4 para o seguinte foi
 
"Prepare-se para viajar."

Graciliano, pelo próprio




Em 1948, 5 antes antes da sua morte e 56 após o berço alagoano, Graciliano Ramos apresentava-se assim ao mundo:

 
«Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu "Caetés" com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros "Selma" (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no "Correio da Manhã".
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-Ihe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.»

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Livro 1 - Memórias do Cárcere - Graciliano Ramos



(1953, a título póstumo)

Soltem as amarras!

O plano é simples e não requer explicações de maior: proponho-me escrever sobre livros enquanto os vou lendo. Viajar pelo interior das suas ideias, falar nos autores, conhecer os lugares de que eles falam, perder-me com eles. Uns atrás de outros, desenfreadamente comê-los.